sábado, 1 de agosto de 2009

Outside

Por ocasião da captura de Darksu, Kenny sofrera ferimentos terríveis. Nos primeiros momentos ele protestou e praguejou de forma bastante enérgica enquanto tentavam estancar o sangue. Mas com o passar dos dias tornou-se quieto e apático, como se sentisse a morte se aproximando.

Seus homens em desespero decidiram chamar a “bruxa” capturada para que o curasse. Trouxeram-na amarrada e, mesmo no cárcere há vários dias, ela ainda continuava bela e imponente.

— Não posso curá-lo... — um tapa e algumas queixas fizeram-na interromper suas breves palavras.

Jesica interpôs-se entre a cativa e seu agressor, protegendo-a de novos ataques.

— Isto não é realmente necessário. Não permitirei qualquer maltrato a sacerdotisa.

— Mas ela é aliada do inimigo e se recusa a cooperar conosco!

A cativa tocou levemente no braço de sua defensora e sussurrou debilmente, segurando a face espancada:

— Como eu dizia antes que os animais interrompessem, eu não posso tentar fazer isso sozinha. Quando a toquei tive certeza de que talvez nós duas possamos, sacerdotisa.

Jesica encolheu-se perto de Darksu, corada e aflita e cochichou longe dos olhos dos homens:

— Não posso! Não sou uma sacerdotisa de verdade!

— Recebeu os ensinamentos?

— Sim, mas... — ela aproximou-se mais da cativa — não pude ser sagrada... não sou mais pura.

Darksu percebeu uma tremenda angústia e vergonha quando a jovem sacerdotisa revelou seu segredo. Com um sorriso de deboche no rosto respondeu-lhe:

— Tenho certeza de que isso não tem a menor importância. Além disso, se não tentar, seu líder vai morrer diante de seus olhos porque estava amarrada a conceitos antigos.

Assustada, Jesica titubeou. Era estranho ouvir de uma sacerdotisa que parecia tão antiga para abandonar conceitos ancestrais, tradicionais. Contudo, agora que se via muito abandonada e distante do Conselho sentia que não lhe restavam muitas alternativas.

Darksu explicou-lhe em particular os procedimentos a serem realizados.

— Eu sou uma mestra de ritual. Vou conduzi-lo e você usará os ensinamentos conforme os recebeu.

Ainda aflita e nervosa, Jesica assentiu e ordenou que soltassem as amarras de Darksu. Com receio do poder da “bruxa” um dos homens esticou o braço o máximo que pôde e cortou as cordas com o gume afiado de sua faca.

Num movimento rápido e assustador, a cativa ergueu os braços e começou a cantar e gesticular. Os homens temiam-na pois em sua cela Darksu costumava resmungar palavras incompreensíveis que lhes disseram mais tarde tratar-se de palavras de maldição.

Enquanto ela cantava, Jesica executava seu próprio ritual. Algumas das palavras conseguia compreender. Subitamente, Darksu interrompeu a cantoria.

— Alguma coisa está errada. Existe aqui a vontade de cura, mas ela não pode se concretizar.

Dizendo isso avançou sobre o corpo esticado de Kenny. O homem estava imóvel e sem cor. Após observar todos seus ferimentos, observou que um deles parecia inalterado. Tocou o ferimento fazendo a tropa reagir. Jesica os impediu sentindo também que o ritual estava sofrendo interferência de algo.

O ferimento era profundo e Darksu concluiu onde estava seu problema. Ouvindo murmúrios de aflição, remexeu a ferida a procura de um corpo estranho e o encontrou escondido no corte: era um fragmento de lâmina. Jogando o pedaço de metal ao lado de Kenny, recomeçou a cantoria com as mãos cobertas de sangue.

Agora sim o ritual poderia ser concluído com sucesso, Kenny estaria, em breve, a salvo. Em poucas horas de observação, as cores retornaram a seu corpo.

Aproveitando a euforia da tropa estrangeira, Darksu recolheu o fragmento e o guardou consigo. Ainda que a tivessem flagrado pegando o objeto saberiam que a lasca de metal não serviria nem mesmo para cortar as cordas que a prendiam. Não se importavam tanto assim se por acaso engolisse a lâmina e morresse.

De volta ao cárcere, certo dia uma comoção geral na vila acordou-a de seu breve cochilo. O tumulto crescia de forma assustadora e em pouco tempo os moradores corriam como se tivessem que salvar a própria vida. E de fato, em poucos minutos isso se transformou em constatação. Podia ouvir o som de espadas entrechocando-se acima da balbúrdia e imaginou se as tropas de Kenny já teriam retornado.

A menina que lhe trazia a comida esquivou-se da massa em fuga e alcançou aflita o cativeiro de Darksu. Gritava coisas incompreensíveis, mas deixou escapar em idioma comum “é um príncipe num cavalo branco”. Depois de tê-la libertado da prisão, a menina retornou a multidão em fuga.

Esgueirando-se pra fora da cela, Darksu observou um cavaleiro avançar pela multidão. Vasculhava com os olhos o vilarejo em busca de alguma coisa. Até que o elmo indicou que encontrara seu objetivo: vinha em sua direção. Reconhecera imediatamente a armadura completa do exército de Kotanni. Seria Natya que viera resgatá-la? Ou o próprio Kotanni? Sentiu um aperto no coração imediatamente após esse pensamento ocorrer-lhe. Começou a andar em direção do cavaleiro salvador. Quando estava mais próximo, percebeu os olhos azuis e frios a fitá-la atrás do elmo. Ele estendeu a mão rapidamente e lançou-a na garupa de seu cavalo.

Sim, um cavalo branco, mas pudera perceber perfeitamente de quem se tratava. Os olhos azuis e frios pertenciam a Eliandra.

Coberta por mais uma dezena de homens de Shirov, Eliandra seguiu outra rota para longe do acampamento civil dos estrangeiros. Darksu não teve muito tempo para ficar com seu coração abalado.

— Meu pai não quis resgatá-la, Darksu. Tive que fazer isso por conta própria, desculpe por ter demorado tanto. Foi difícil convencer os homens desobedecerem a uma ordem de meu pai. — ela rangia os dentes a cada palavra — Felizmente, alguns ainda têm bom senso para perceber as implicações de deixar a mestra de ritual em poder do inimigo.

— Engana-se, Eli... Ele não se recusou, fui eu quem pediu pra não ser resgatada imediatamente... Mas já cumpri meu objetivo no acampamento inimigo.

— O que exatamente esteve fazendo no acampamento civil?

— O acampamento não é exatamente o que pensa. Kenny estava se recuperando de ferimentos de batalha nele.

Eliandra interrompeu a corrida. Imaginava que já estivessem fora de perigo após tanto tempo de cavalgada. Darksu se encolhia debaixo do manto atrás da outra mulher na sela.

— Acho que estamos sendo seguidas.

Discretamente, Darksu começou a murmurar algumas palavras que não faziam o menor sentido para Eliandra. A mulher, sacando a espada, sentiu um frio percorrer-lhe a espinha neste exato momento. O cavalo remexia-se inquieto.

— Vamos adiante! Agora! — afoitou-se Darksu.

Sem pensar, Eliandra atiçou o cavalo. Percebeu que perdia o controle sobre o animal. A montaria estava agitada e seus instintos lhe dominavam apesar dos comandos que tentava inutilmente com as rédeas.

A mestra de ritual sabia exatamente o que deveria ter acontecido com seus perseguidores. Se tivessem sorte, estariam perdidos nos barrancos ocultos na floresta. Se não tivessem, provavelmente a fuga das montarias os teriam matado. Era incrível o poder emitido por Eliandra. E a moça, inocentemente, tentava acalmar a montaria, sem saber que ela mesma causara o alvoroço.

Nunca antes imaginara o que Eliandra poderia fazer, mas tinha uma desconfiança por causa das habilidades de seu pai. Contudo, no momento que executara o ritual, pudera sentir um pânico em sua mente que nunca antes sentira. O efeito deveria ter se propagado em círculo por vários metros. A filha de Kotanni conseguia transmitir emoções a todas as criaturas vivas ao seu redor. De fato, assemelhava-se com a capacidade de seu pai em vasculhar a mente de suas vítimas e manifestar suas vontades, algumas desconhecidas até.

Darksu lastimou-se por ser tão vulnerável a esses tipos de poderes. Principalmente porque apenas pelo intermédio de seus rituais que os demais poderiam manifestar-se. E não fora diferente no acampamento de Kenny. A sacerdotisa deprimida conseguira usar os ensinamentos recebidos em sua terra estrangeira. Provavelmente imaginara que não poderia usá-las por causa de sua pureza... Uma piada, logicamente, visto que este plano impedia qualquer manifestação de poder, independente da pureza de corpo e alma.

Olhando ainda de forma assustada para trás, Darksu chegava a algumas conclusões sobre sua visita ao acampamento de Kenny. No momento que iniciara o ritual, percebera grandes pontos de poderes muito fortes entre os presentes. Mas poucos poderiam superar o poder de Kenny. Apenas uma vez antes sentira algo parecido... Na presença de Kotanni. Abriu a mão que envolvia o pedaço de metal coberto de sangue seco. Assim que retornasse a fortaleza, com certeza faria algumas investigações sobre a ligação dos dois.